Lola Rennt, ou Corra Lola, Corra no Brasil, é um filme alemão de 1998 dirigido por Tom Tykwer e estrelado por Franka Potente. O filme conta a mesma história três vezes, mostrando diferentes possibilidades para o seu final de acordo com pequenos incidentes que modificam o rumo dos acontecimentos. Este tema seria explorado mais tarde pela indústria americana de entretenimento em filmes tais como Efeito Borboleta. Premiações: Melhor Filme Estrangeiro, no Independent Spirit Awards e Prêmio da audiência, no Sundance Film Festival.
Alucinante, frenético, eletrizante. A velocidade é um signo do filme Corra Lola, corra (Lola rennt, 1998) dirigido por Tom Tykwer. Velocidade que remete à linha de produção, produção em série, que nunca pára; ao tempo da indústria, do mercado, das instituições hegemônicas, da produção científica e tecnológica; ao avanço desenfreado, ao bonde do progresso a todo custo.
Associações analógicas que transformam velocidade em sinônimo de rapidez, que colam o tempo aos movimentos e transformações dos corpos, à noção de tempo cronológico.
Rapidez e lentidão emergem não como meras quantificações do movimento, mas antes como qualificações do movimento. Rápido, o tempo do massacre, da superficialidade, da eficiência tecnocientífica, das mídias, da informação a serviço do marketing. Lento, o tempo da poesia, da imaginação, da ciência desvinculada do mercado, da arte. Qualificações que condicionam as formas, espaços e tempos onde pensamento, criação e liberdade se fazem possíveis. Mas a fala zombeteira do segurança do banco logo no início do filme - “A bola é redonda. O jogo dura 90 minutos. Isso é um fato. Todo o resto é teoria” - já anuncia a travessura que Corra Lola, corra propõe: desviar da tranqüilidade das associações analógicas e libertar um tempo sem correspondência, enlouquecido, labiríntico, incorpóreo. Tempo em que velocidades de outra natureza ganham intensidade: dos afetos, da criação e do pensamento.
Lola é uma máquina. Ela não pára. Corre contra o tempo. O efeito de rapidez no filme é potencializado pela eletrizante trilha sonora, pelos deslocamentos rápidos de câmera, pela montagem que brinca com os efeitos dos jogos eletrônicos. Também pela presença dos templos do mercado: a quadrilha de contrabando de diamantes, o banco, o supermercado, o cassino.
A história gira em torno do “campo de forças” criado pela sacola de dinheiro, para usar uma expressão que o italiano Italo Calvino usa em sua obra Seis propostas para o próximo milênio. A sacola de dinheiro tornar-se-ia o “verdadeiro” protagonista do filme. Tudo giraria em torno do centro organizador: uma corrida em busca de 100.000 marcos em 20 minutos.
Nessa lógica, Corra Lola, corra emerge como um filme que se apropria e representa um tempo industrializado-tecnológico-globalizado. Como se o mundo fosse um grande quebra-cabeças e a tela-do-cinema dele retirasse uma peça. O quebra-cabeças pressupõe um jogo de encaixar diferentes peças para com elas formar um todo, um rosto, uma paisagem, um mapa. É a velha e conhecida relação entre parte e todo que permite esse conjunto de associações analógicas. Mas essas associações não encontram ressonâncias nos desejos do diretor do filme, expressos nos encartes que acompanham o DVD: “É a paixão desta mulher sozinha que derruba as rígidas regras e regulamentos do mundo que a cerca. O amor pode mover montanhas e move. Acima de qualquer ação, a força central deste filme é o romance”.
Parece ser próprio de signos presos ao mundo material, como a velocidade, induzirem à interpretação do todo do qual, presumidamente, fariam parte. Mas há outra possibilidade de pensar a velocidade em Corra Lola, corra. Como um fragmento que vale por ele mesmo, que não pertence a nenhuma totalidade, que se distingue da rapidez e que não está vinculado aos movimentos dos corpos.
Este é um convite que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem em sua obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Para eles, um movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade. Já a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo, velocidade.
É interessante pensar em Corra Lola, corra por esses deslocamentos. Enquanto Lola corre, a trama do filme não ganha velocidade. São antes momentos de desaceleração fílmica, momentos de parada na trama. Lola corre e cruza duas vezes com o mendigo, que carrega a sacola de dinheiro esquecida, sem percebê-lo. O filme ganha velocidade nos momentos de menor movimento dos corpos. Instantes em que ocorrem transformações que não estão nos corpos, mas que são atribuídas a eles. Como no momento em que Lola se transforma em bandida, assaltando o banco, e o corpo banco se transforma em um corpo prisão. Ou ainda quando Lola descobre que seu pai não é seu pai. Seu corpo filha se transforma num corpo bastardo, sem que nenhuma mudança no corpo físico de Lola ocorra. São apenas mudanças de gestos e expressões da atriz que emergem na tela, criando sensações de dor, sofrimento, abandono e vazio nas cenas. Uma eternidade se passa em segundos. Lola na porta do banco com o olhar perdido. Vemos uma jovem de azul se aproximar, que em um instante vira uma senhora de idade. “O que foi?”, pergunta a senhora. Lola sente que perdeu muito tempo e corre em direção a Manni. Chega atrasada. Durante todo o filme a estranha sensação de que Lola está fora do tempo. Sempre atrasada ou adiantada.
Essas são transformações incorpóreas, que criam na trama uma velocidade que não pode ser mensurada, que não permite comparações ou disputas, nem pode dispor os resultados numa perspectiva histórica. Acelerações de outra natureza.
No início do filme, assistimos uma longa cena em que Lola está em seu quarto ao telefone com Manni. Quando ele lhe coloca uma prova de amor – conseguir 100.000 marcos em 20 minutos para salvá-lo –, Lola se transforma numa heroína, como nas histórias em quadrinhos, ou nos jogos eletrônicos. Efeito potencializado pela passagem de Lola para a tela da TV numa animação. Ainda no quarto, o efeito de velocidade máxima, “pensamentos a mil”, surge na cena em que Lola está imóvel e a câmera gira ao seu redor como uma roleta-pensamento, selecionando, por meio de imagens, a quem ela poderia recorrer para pedir ajuda.
O quarto de Lola traz ainda inúmeras montagens de cenas/cenários em que o tempo se desvincula do movimento. Possibilidades de pensar o tempo desvinculado da sucessão, desenvolvimento, do antes e do depois. As bonecas, algumas vestidas outras nuas, em cima da cômoda de Lola, trazem juntos na tela, ao mesmo tempo, infância-adolescência-maturidade. Também no relógio antigo com pequenos adesivos que sobrepõem os números arábicos aos romanos, temos ao mesmo tempo, o ontem e o amanhã, o oriente e o ocidente, o repouso e a velocidade. São como que fragmentos de outro mundo ali colocados/colados. Pequenos fragmentos que não fazem da obra uma totalidade orgânica. Os gritos de Lola ecoam por todo filme arruinando e estilhaçando o tempo marcado pelas espirais, túneis, relógios. Gritos que matam o tempo, que abrem brechas para a libertação de um tempo sem representação.
Composta por Samuel Barber, "Adagio for Strings" se tornou uma das mais famosas músicas eruditas já conhecidas. Décadas depois, o Dj Tiësto popularizou novamente está canção, além de divulgar a música clássica ao cenário elêtronico internacional. O remix de "Adagio for Strings" tornou-se um dos seus maiores hits.
Mas quem foi Samuel Barber e quem é Tiësto?
Samuel Osborne Barber (Westchester, 9 de Março de 1910 — Nova Iorque, 23 de Janeiro de 1981) foi um compositor norte americano de música erudita, melhor conhecido pela obra “Adagio for Strings”. Começou a compor com sete anos de idade, os seus estudos formais foram feitos no “Instituto de Música Curtis”, na Philadelphia. Aos 25 anos, tornou-se membro da Academia Americana em Roma.
Compôs um conhecido “Concerto para Violino” e a obra “Music for a Scene from Shelley”, Opus 7, esta última baseada num poema de Percy Bysshe Shelley. Sua ópera “Vanessa” (1957) , ganhou o prêmio Pulitzer.
Tiësto é o nome artístico do DJ, remixer e produtor musical holandês Tijs Michiel Verwest, nascido em 17 de janeiro de 1969.
Ele tornou-se um dos nomes mais famosos na cena mundial de trance e música eletronica, além de ser o primeiro DJ a apresentar-se para um grande público sem nenhum outro DJ ou outros actos de abertura. Também é notado por ser o primeiro DJ a tocar ao vivo no palco em Jogos Olímpicos (cerimónia de abertura das olimpíadas de 2004 em Atenas).
Ainda em 2004, lança o seu segundo álbum, "Just Be", de onde saíram grandes singles como: "Just Be", "Love Comes Again", "Traffic", "Nyana" e "Adagio for Strings". Em abril de 2006, foi nomeado o embaixador mundial para a fundação Dance4Life, combatendo a disseminação da Aids, para a qual gravou a faixa "Dance4life."
Além de receber inúmeros prémios pelo seu trabalho, Tiësto foi coroado como o "Melhor Dj do mundo" 3 vezes consecutivas pela DJ Magazine de 2002 / 2003 / 2004. Recebeu uma nomeação para um Grammy Award em 2008, por seu álbum Elements of Life. Em 2008 e 2009, foi eleito pelo International Dance Music Awards (IDMA) no Winter Music Conference, em Miami, como o melhor DJ do mundo.
Para admirar e se inspirar, as duas apresentações abaixo.
Premiações: Cinco indicações ao Oscar, nas seguintes categorias: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia, Melhor Som e Melhor Roteiro Original.Uma indicação ao Globo de Ouro, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.Ganhou dois prêmios no BAFTA, nas seguintes categorias: Melhor Roteiro Original e Melhor Desenho de Produção. Foi ainda indicado em outras 7 categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Audrey Tautou), Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Fotografia, Melhor Trilha Sonora e Melhor Edição.Recebeu treze indicações ao César, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Audrey Tautou), Melhor Ator Coadjuvante (Rufus e James Debbouze), Melhor Atriz Coadjuvante (Isabelle Nanty), Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Edição, Melhor Desenho de Produção, Melhor Trilha Sonora, Melhor Som e Melhor Roteiro. Ganhou o Prêmio da Audiência no Festival Internacional de Edimburgo. Ganhou o Prêmio do Público no Festival de Cinema de Toronto. Recebeu uma indicação ao Grande Prêmio Cinema Brasil, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.Ganhou o Prêmio Adoro Cinema 2002 de Melhor Atriz Revelação (Audrey Tautou).
“Caixinha de Surpresas”: Uma sinopse de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”.
O que você faria se encontrasse uma caixa cheia de objetos que pertenceram a uma criança que morou no seu apartamento há quarenta anos? Talvez você não desse importância nenhuma ao fato. Coisa sem valor, você diria. Mas se seu nome é Amélie Poulain e você é a protagonista do ótimo “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, encontrar o dono da tal caixinha torna-se uma missão.
Amélie vive só em um pequeno apartamento alugado no simpático bairro parisiense de Montmartre e trabalha como garçonete numa cafeteira do bairro, o Deux Moulins. Nada de mais extraordinário acontece na vida da sonhadora e tímida Amélie, a não ser a convivência com os esquisitos freqüentadores do botequim. Uma é hipocondríaca e atende numa pequena banca de cigarros. Um vive vigiando a vida da ex-namorada que também trabalha na cafeteira. Outro é um escritor fracassado e melancólico; outro é... Era de se esperar que no meio de tanta gente maluca, absurdamente solitária e desencantada, não poderíamos ser brindados nunca com um grande filme. Mas somos!
Amélie já não vem de um prognóstico familiar muito promissor: seu pai, Raphaël Poulain, vive recluso na periferia de Paris desde a morte da mulher e prefere a companhia de um anão de jardim a de outros seres humanos. Quando criança, Amélie nunca tivera muito contato com o mundo exterior, seu único “amigo” era um peixinho de aquário chamado “Cachalote”. Trancada em casa, sem amigos, desenvolve uma prodigiosa imaginação, uma visão poética do mundo, a qual carrega na mala quando decide sair de casa aos dezoito anos e ganhar a vida por conta própria.
Até o episódio da caixinha de brinquedos, sua vida transcorre sem grandes acontecimentos, no entanto, decidida a encontrar o dono dos objetos, ela destrói seus obstáculos alienantes e aventura-se pelas ruas de Paris.
A fábula contemporânea do cineasta Jean-Pierre Jeunet (diretor do filme) resgata uma Paris nostálgica, multicolorida, lúdica até quando parece suja. Uma Paris de sonho, de certa forma, pois só existe na mente do diretor. Uma Paris onde cabe um filme delicioso.
De certa forma, “Amélie” é construído em cima do imaginário norte-americano de fazer cinema. O filme propõe ao público, a primeira vista, o carinho pelos seres humanos e a visão lúdica diante da vida. No entanto, “Amélie” evoca a França através de um filtro estético assumidamente pop. Nesse sentido, o longa lembra também muitas obras brasileiras dos anos 1990: é um filme que olha para dentro do país de origem, mas com olhos estrangeiros.
O maior mérito de “Amélie”, no filme, é resgatar os pequenos prazeres da vida, algo que a gente costuma esquecer com a maior facilidade. A menina triste vira uma beldade triste de sorriso cativante (Audrey Tatou, o par de olhos negros mais luminosos do cinema atual). Triste? Ah, sim! Embora sempre sorridente e animada, Amélie vai aprender, na jornada que o filme mostra, quão dura pode ser a opção por uma vida solitária.
De qualquer forma, é impossível não se apaixonar pela personagem logo nos primeiros minutos. A garota arranca prazer de práticas cotidianas aparentemente banais, como enfiar a mão num saco de feijão ou olhar para os rostos da platéia no cinema, nas cenas de maior impacto dramático. Esses gestos dão uma dimensão humana que faz falta a grande parte dos personagens dos filmes contemporâneos. A poesia do cotidiano é a lição mais bela de “Amélie Poulain”.
Um dos maiores trunfos da narrativa de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” é a verdadeira enxurrada de boas idéias. Na abertura extravagante, que explora uma série de coincidências à “Magnólia” (o filme de Paul Thomas Anderson), já somos convidados a mergulhar na trama. O enredo escorrega rápido, o ritmo é leve e ágil, as surpresas se sucedem a cada momento. A narração em off entra tão veloz que fica meio difícil acompanhar as cenas e as legendas ao mesmo tempo. São tantas as idéias inteligentes que o roteirista (Guillaume Laurant) tira da cartola – algumas são até deixadas de lado, por pura impossibilidade de narrar dois atos simultâneos – que daria para construir um épico com o dobro da duração, sem maiores problemas.
Ao lado do roteiro, a fotografia de Bruno Delbonnel é outro ponto alto. O uso de cores é tão estilizado que chama a atenção instantaneamente. A idéia básica do filme deu trabalho: utilizar o contraste entre verde e vermelho para criar uma sensação de parque de diversões, uma maçã do amor de película. Assim, cada cena foi planejada e executada meticulosamente, de modo a haver sempre um ponto verde e outro vermelho em cada plano.
Multicoloridas, recheadas de cores quentes, as imagens criam uma Paris de sonhos (a Paris da cabeça de Amélie), onde as nuvens possuem as formas de bichinhos de pelúcia e as frutas e legumes estão sempre maduros. A direção de arte é coerente com a obra de Jeunet, um diretor conhecido pela extravagância imagética (“Delicatessen” e “Ladrão de Sonhos”). A diferença é que o visual abandona a sombra em favor da luz, como se o cineasta houvesse saído de um pesadelo e começasse finalmente a sonhar.
Já a trilha sonora, com canções construídas sobre realejos e acordeões, fornece o toque que faltava para nos sentirmos num parquinho. Pronto, é isso: “Amélie Poulain” possui a centelha mágica que transforma espectadores em crianças de novo, joga-os de volta num grande parque de diversões. Talvez por isso, a imagem que fica na cabeça após uma sessão do filme esteja nos minutos finais, quando o cineasta enfoca uma máquina de fazer algodão doce no carrossel de Montmarte.
Antes de aprofundar qualquer discussão pejorativa, destaca-se que “O fabuloso destino de Amélie Poulain” já pode ser considerado um clássico, principalmente devido à qualidade da obra, começando pela originalidade do roteiro. Seu ritmo é calmo e harmonioso, a sonoplastia dá todo um envolvimento à cena que conquista o receptor e principalmente a fotografia, fator que se destaca. Com cenário predominantemente verde e vermelho, as cores dão um contraste entre o sensível e o agressivo, sentimentos que se passam na vida das personagens.
De maneira lúdica, a trama vai se desenrolando de maneira mágica e fantasiosa, com direito a objetos inanimados. Mesmo acontecendo na década de 90, o visual das cenas e as roupas das personagens têm todo um ar vintage, o que visualmente engrandece ainda mais a obra.
Uma análise mais profunda...
Amélie Poulain e o fabuloso destino dos proletários
A obra já pode ser considerada um clássico, e a personagem que ganhou vida na película se tornou uma espécie de referência para garotas na faixa dos 14 aos 23 anos. Um fenômeno, denotado por bottons em mochilas, estilo de roupas, comunidades virtuais etc. Uma identificação que evidentemente não é simples casualidade.
Garçonete em uma lanchonete, Amélie é uma proletária, trabalhadora. Há muito, principalmente no chamado Primeiro Mundo, ser proletário não significa necessariamente não ser classe média, se entendermos por classe média um certo padrão de vida e de poder aquisitivo.
Amélie é proletária, mas não sofre privações econômicas. Através do seu trabalho no setor de serviços, em uma tarefa de atendente que normalmente exige uma alta dose de trabalho imaterial relacionado à comunicação e à afetividade para lidar com os clientes, ela é financeiramente independente e mora sozinha em um apartamento. Garota introspectiva, que, até mesmo pela sua história familiar, vive em um certo distanciamento social em relação aos outros. Ela é uma personagem sem amigas, sem amigos propriamente, sem um círculo social efetivo. Poderia configurar o átomo da multidão solitária de Riesman, ou de algum outro conceito que busque compreender e descrever a individualização nas sociedades capitalistas de pelo menos uns sessenta anos para cá.
Amélie representa, já no prosaísmo de seus declarados e destacados prazeres de vida, como quebrar a casca do pudim com a colher, um mundo encolhido a um horizonte de prazeres privados, ou de prazeres privados de um horizonte que aponte a uma intervenção em uma esfera pública, de gestão coletiva, de influência nas suas condições de vida. A política, como ação mobilizadora, de instituição de sociedade e de suas regras, inexiste no âmbito de vida de Amélie Poulain. É como se a política estivesse extinta do seu mundo, sua possibilidade já não mais existisse. Resta a naturalização do confinamento e da atomização, e a emergência de uma vida de prazeres moldados por essa ausência e restrição. Um mundo privado de ação política.
Poulain aparenta uma verdadeira compulsão em jogar com os outros, com aqueles que aparecem ou fazem parte do seu cotidiano. E jogar com o outro, na vida da personagem, não significa jogar junto com o outro, em uma participação consciente numa brincadeira, mas se divertir e se entreter através do outro, manipulando-o de alguma forma. Mesmo que suas intenções não sejam moralmente condenáveis ou ao menos prejudiciais a terceiros, os planos elaborados por Amélie visam quase sempre fazer o outro agir, pensar ou ter experiências conforme pré-determinado pela vontade dela, sem que esses o saibam. E em última análise, transparece que, antes de tudo, a motivação de Amélie é seu prazer no jogo, e em conseguir o que havia planejado: seja com o rapto do anão do jardim de seu pai e o envio de fotos do anão visitando pontos turísticos do mundo para convencê-lo a também viajar, seja com a carta romântica supostamente escrita pelo marido da vizinha antes de ele ter falecido. Até mesmo sua empolgação demonstrada quando ela ajuda o cego, conseqüência da expansão de um estado de êxtase pessoal, aparece mais como uma busca de auto-satisfação do que como conseqüência de uma ética, que por definição independe de humor.
Os jogos de Amélie Poulain se estendem até mesmo ao homem que ela deseja, fazendo-o ir aonde ela designa através de mensagens e da posse de uma bolsa que ele procura. O caráter lúdico dessas intervenções de Poulain na vida de pessoas em sua volta se assemelha, na forma, ao que se denomina em certos meios por terrorismo poético. Porém, no caso da personagem, não há sequer uma intencionalidade crítica, política, por trás dessas intervenções. O “terrorismo poético” de Amélie, além de ser ação individual, já não possui sequer intenção política manifesta. Mais uma vez, o que está presente a todo momento no filme e na vida da personagem é a total ausência de política, de questões relativas ao condicionamento de sua vida e dos outros.
A identificação de uma juventude com Amélie Poulain é também, podemos crer, a identificação com uma vida em que nem a pequena política, na acepção de Gramsci, existe no horizonte. Fora esse contexto, e além das identificações mais óbvias — por ela ser uma garota nova e comum, ser o personagem principal, e por portar características desejáveis bastante flagrantes, como sua independência e iniciativa –, a identificação dessa juventude com Amélie Poulain e o status de referência que ganhou a personagem, deve partir também do poder que ela possui sobre os outros, com os ‘jogos’ que ela cria. Esse poder da manipulação é o poder possível de ser exercido sobre o outro, por uma garota que de fato não tem poder algum na sociedade.
Amélie Poulain reflete a condição de decomposição política de um proletariado, ou de uma juventude, e ao mesmo tempo é sua referência e ideal. Espelha ao mesmo tempo sua falta de poder e seu ideal de poder. Amélie Poulain é um retrato do espírito do nosso tempo, e também por isso é um clássico.
Confira o Trailer. Magnifique!!!
Vale a pena ressaltar a trilha sonora do Yann Tiersen.
Guillaume Yann Tiersen (Brest, 23 de junho de 1970) é um músico de vanguarda, multiinstrumentista e compositor francês de origem judaica. Compondo para piano, sanfona e violino, sua música aproxima-se de Erik Satie e do minimalismo de Steve Reich, Philip Glass e Michael Nyman. Tornou-se internacionalmente conhecido ao compor trilhas sonoras de filmes como "O fabuloso destino de Amélie Poulain" e "Good Bye, Lenin!".
No filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain", Tiersen assina toda a trilha sonora, com composições espetaculares, dignas de clássicos do cinema internacional. Para apreciar, um ótimo clip em animação com a música "The Piano".